sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Sobre a Saudade

JÚNIOR, A. Saudade. 1889. Óleo sobre tela, 101 x 197 cm

Saudade. Do latim solitate (solidão e desamparo) que originou os arcaicos soedade, soidade e suidade, que sofreu influência de saudar. Há quem diga que a grafia terminou em saudade por uma questão de estética literária. Também pode se considerar a influência das palavras árabes suad, saudá e suidá, que podem significar: uma profunda tristeza; o sangue pisado dentro do coração; e uma doença hepática que se revela pela melancolia (NASCENTES, 1955).

Durante muito tempo, ouvi dizer que saudade é uma palavra que só faz sentido para nós, falantes da língua portuguesa. Chegando a ser intraduzível. Contudo, mesmo sendo considerada a sétima palavra mais difícil de se traduzir (TODAY TRANSLATIONS, 2008), as outras nações têm vocábulos equivalentes. Afinal, por que tal sentimento não seria denominado?

Entretanto, mesmo vivenciando a saudade, talvez os não-lusófonos não compreendam a dimensão desse nosso modo de sentir. Michaëlis (1914) defende essa ideia dizendo que nenhuma outra palavra estrangeira passa o sentido de ser "a lembrança de se haver gozado em tempos passados, que não voltam mais; a pena de não gozar no presente, ou de só gozar na lembrança; e o desejo e a esperança de no futuro tornar ao estado antigo de felicidade" (p. 34-35).

Desde o ano passado, estou no grupo dos que vivem todos estes significados, seja de modo metafórico ou concreto. Tudo isso, porque para tentar controlar a pandemia de COVID-19, recomendou-se adotar medidas como distanciamento social, isolamento e quarentena (AQUINO et al, 2020). Não sei quanto a você, mas eu me mantive em casa por mais de um ano.

Resultado? Saudade. Da família, dos amigos, da rotina, dos eventos, dos espaços públicos, etc... Dentro de casa, via os meses se passando sem nenhuma melhora. Com isso, por vezes, o tédio ocupava o lugar dessas saudades.

Tédio. Tonalidade afetiva, ou seja, um dos modos como experimentamos o mundo (HEIDEGGER, 2003). Quando chega, indica que nos tornamos desinteressantes para nós mesmos. Um tipo de ausência que me trouxe outra saudade: a de mim mesmo. O que me angustiou ainda mais.

Angústia. Outra tonalidade afetiva. A compreensão da nossa finitude. Entendimento este que nos derruba na indiferença e no esvaziamento, mas que nos oferece a possibilidade de sair da decadência e de nos apropriarmos do próprio ser. De modo geral, toda angústia é, em última instância, angústia em relação à morte (HEIDEGGER, 2015).

Morte. A finitude da existência. Assim como o tédio e a angústia, presença inalienável da experiência humana (HEIDEGGER, 2015). Na minha atual situação, a responsável por uma saudade, até então, inédita: a saudade do meu pai.

Hoje completa um mês que meu pai deixou este plano. Eu nunca soube o que é sentir saudades dele. Afinal, tive a felicidade dele estar sempre por perto. É difícil, não vou negar. Por vezes, me pego criando estratégias para lidar um pouco melhor com essa dor.

Uma dessas foi montar uma lista com as músicas favoritas dele. As mais tocadas nos fins de semana dos últimos 30 anos. Às vezes, algumas faixas traz sorrisos, outras vezes lágrimas. Porém, na última terça-feira, pareceu trazer um recado.

Em um dos dias mais sofridos, nessa lista tocou uma das mais escolhidas por ele no karaokê: Canteiros (FAGNER, R.; MEIRELES, 1973). Na citada canção, Fagner trata sobre saudade em um diálogo com a Marcha, de Cecília Meireles (2001); Na Hora do Almoço, de Belchior (1974); e Águas de Março de Tom Jobim (1973).

Os primeiros versos descreveram meus últimos dias: 

"Quando penso em você / Fecho os olhos de saudade / Tenho tido muita coisa / Menos a felicidade"

Em seguida, uma recordação de que, como afirma Heidegger (2015), existência é finitude, mas também é abertura de possibilidades:

"E eu ainda sou bem moço pra tanta tristeza / E deixemos de coisa, cuidemos da vida / Pois se não chega a morte / Ou coisa parecida / E nos arrasta moço / Sem ter visto a vida". 

Por fim, essa questão é reforçada com: 

"São as águas de março fechando o verão / É promessa de vida em nosso coração".

Ao me dedicar na tarde de hoje para refletir sobre saudade, tive a possibilidade de ver toda a potência etimológica e lusófona que esta palavra carrega. Neste último ano, senti na pele toda essa força nas saudades que vivi. Confesso que não tem sido uma jornada fácil. Porém, sei que estar no mundo envolve se angustiar, mas também ser possibilidades. Logo, seguirei aberto a estas.


REFERÊNCIAS:

AQUINO, E. M. L. et al. Medidas de distanciamento social no controle da pandemia de COVID-19: potenciais impactos e desafios no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, [online], v. 25, n. 1, p. 2423-2446, jun. 2020.

BELCHIOR. Na Hora do Almoço. In: BELCHIOR. Belchior. Rio de Janeiro: Chantecler, 1974.

FAGNER, R.; MEIRELES, C. Canteiros. In: FAGNER. Manera Fru Fru, Manera. Rio de Janeiro: Polygram, 1973.

HEIDEGGER, M. Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: mundo, finitude e solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

_____. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2015.

JOBIM, A. C. Águas de Março. In: JOBIM, T. Matita Perê. Rio de Janeiro: Philips, 1973.

MEIRELES, C. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

MICHAËLIS, C. A Saudade Portuguesa: divagações filológicas e literar-históricas em volta de Inês de Castro e do cantar velho "saudade minha - ¿quando te veria?". Porto: Renascença Portuguesa, 1914.

NASCENTES, A. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1955.

TODAY TRANSLATIONS. Most Untranslatable Word. 2008. Disponível em: https://www.todaytranslations.com/news/most-untranslatable-word/. Acesso em: 27 ago. 2021.


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